Conta uma lenda que, na velha França, na região da Bretanha, havia junto ao mar uma cidade chamada Yf, famosa por sua bela Catedral.
Ao repicar de seus sinos, bênçãos se espalhavam por toda a região, alegrando as crianças, animando os artesãos, os lavradores, dando força aos anciãos, e, detalhe importante, afugentando para longe os maus espíritos.
O templo havia sido edificado de frente para o poente. Assim, ao final do dia, normalmente sua fachada tornava-se dourada, iluminada pelos os últimos raios do sol. Era um espetáculo que encantava os moradores de Yf!
Segundo se dizia, os monges que esboçaram a Catedral, haviam escolhido propositadamente essa direção. Tinham eles em vista que o crepúsculo, com a transição da beleza do dia para a escuridão e incertezas da noite, recordasse aos fiéis, de algum modo, o grande crepúsculo do mundo anunciado no Evangelho, isto é, o seu irremediável fim e o Juízo Final. Aliás, sobre o portal principal encontravam-se esculpidas as imagens de Cristo sentado em seu trono de Juiz, ladeado pela Virgem Maria e pelos Apóstolos, e bem como por uma fileira de Santos e outra dos condenados.
Um dia Yf recebeu a visita de um sultão procedente do oriente. Ao se aproximar da Catedral foi ele tomado de grande admiração e deteve-se para melhor contempla-la. Ao saber que sua edificação fora orientada por monges da ordem de São Bento, indagou a seu guia:
— Como podem homens tão humildes, construir obra tão magnifica? E como denominais estas janelas tão elevadas e estreitas, com vidros de tão variado e agradável colorido?
— O desenho dessas janelas chama-se ogiva, explicou-lhe o guia. De fato, o traçado dessas ogivas, tanto nas janelas com seus belos vitrais, quanto nas outras que suportam o teto do edifício, são de uma altura fora do comum. Elas são próprias a convidar ao homem, que deve labutar com os pés sobre a terra, a elevar também sua mente para as coisas mais altas, para a consideração das verdades eternas.
— Este é um ambiente paradisíaco, nem parece que estamos em meio às lutas da vida terrena, comentou o Sultão.
— Sim, concluiu seu guia. Mas a realidade é que vivemos em meio a todos os riscos e limitações da existência humana. Todos estão sujeitos às consequências do pecado original. Se no futuro os habitantes de Yf sofrerem alguma forma de decadência espiritual, poderão rejeitar esse tão elevado ambiente…
Afinal, o ilustre visitante despediu-se agradecido, e sucederam-se os anos sem grandes novidades para piedosa e atuante cidade de Yf.
Passaram-se os tempos.
Aconteceu, então, que aquela hipótese de terrível esfriamento das almas começou a se concretizar. A partir de certo momento, alguns de seus habitantes começaram a sentir certo grau indiferença e mesmo rejeição por sua Catedral. As almas que antes demonstravam excelente dedicação passaram à condição de serem apenas boas pessoas, as boas pessoas tornaram-se medianas e as medianas afundaram na mediocridade e no pecado.
Um dia, a lenta tragédia das almas se manifestou também numa súbita tragédia da natureza física. Um forte tremor, ondas gigantescas, um grande ruído, e a Catedral foi submersa no fundo mar.
Depois da surpresa e susto diante da tragédia, as populações vizinhas prosseguiram sua rotina de vida, e a lembrança do doloroso episódio foi se apagando de suas cogitações. Em consequência, durante muito tempo não mais se ouviu falar mais da “Catedral submersa”.
Entretanto, mais tarde, esporadicamente começaram a reaparecer notícias. Alguns pescadores, asseguravam que, em ocasiões de lua cheia, quando era calma a noite e as estrelas cintilavam no céu, viam eles algo de muito surpreendente, à distância, na superfície do oceano: torres se levantavam à superfície do mar, com os sinos a repicar.
Outros navegantes afirmavam ter visto durante as tempestades e sob o clarão dos raios, ruínas que pareciam ser de uma cidade submersa.
Assim, de vez em quando a lembrança Catedral submersa era objeto tanto de narrações às crianças quanto de conversas entre adultos.
Parecia que os sinos daquele templo repicavam para chamar as almas, como filhos pródigos que devessem voltar à casa paterna. Mas, como voltar? Seria indispensável que Catedral também reaparecesse sobre a terra firme… Uma saudade, um pesar, um desejo de conversão remoía os corações…
* * *
Por certo, as lendas podem refletir as realidades da história de um povo, especialmente aquelas mais dolorosas, acenando para a uma conversão, um retorno. Na História da Revolução Francesa alguns fatos reais se ajustam a essa lenda.
A partir de 1793, na fase do Terror revolucionário, numerosas foram capelas, igrejas e catedrais da França vieram a ser profanadas, delapidadas ou arrasadas pelas mãos, por assim dizer, de seus próprios filhos. Até mesmo sacerdotes laicizados participaram daqueles atos típicos de uma alucinação coletiva.
Tal vandalismo, carregado de ódio à sacralidade e à beleza, mostrou-se com toda a violência. Eis apenas alguns exemplos: a Saint Chapelle, igreja edificada pelo Rei São Luís IX para ser relicário da coroa de espinhos de Jesus, foi transformada em depósito de velhos documentos, enquanto em Reims o santuário de São Remígio foi transformado numa escola de equitação. O arquiteto Petit-Radel, por sua vez, propôs que todas as igrejas da França fossem transformadas em mercados.
Em 1800, o regressar à França após um período de exílio, o escritor Chateaubriand assim descrevia o panorama que encontrou: “Parecia que o fogo dizimara as vilas, reduzidas a um estado miserável e semidemolidas, por todo canto lama, poeira, cinzas, detritos e
escombros. À direita e à esquerda dos caminhos apareciam castelos abatidos, bosques destruídos, igrejas abandonadas, túmulos violados, campanários sem sinos, santos sem cabeça e retirados de seus nichos”. Manifestava ele também a esperança de que, mesmo daquelas cinzas, algo de saudável pudesse renascer.
Realmente, em termos de arquitetura, ocorreu no início de século XIX uma justa valorização da arquitetura medieval.
Desse modo, pode-se dizer que traços das Catedrais profanadas ou destruídas, referidas nas lendas ou nas páginas da História, não apenas reapareceram à tona dos mares ou dos montes de entulho, mas voltaram a ter o direito de existir à luz do dia. Seus campanários, suas ogivas, seus vitrais voltam a ornar as igrejas em estilo neogótico, em importantes metrópoles de todo o mundo.
Pe. Colombo Nunes Pires EP
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